Ele disse que não voltaria para casa. Fechei a cara diante de tal negação, coloquei uma música em meu Ipod no volume máximo e ignorei todas as tentativas de comunicação. Meu pai, por sua vez, deu de ombros e continuou a dirigir, como se nada estivesse errado. Eu sabia muito bem que a realidade era outra. Ele odiava quando alguém o ignorava, especialmente quando esse alguém era uma de suas filhas.
Depois de um tempo, finalmente tentou se comunicar. Continuei fingindo que ele não existia. Tentou me cutucar, mas apontei para meus fones de ouvido e comecei a cantar. Ele revirou os olhos, disse qualquer coisa que não ouvi e voltou sua atenção para o volante, parecendo finalmente ter se dado por vencido. Não pude deixar de sorrir.
Fechei os olhos e concentrei-me na melodia. Fiquei assim por umas boas três músicas, até que senti a freada brusca do carro e fui para frente, quase trombando no vidro. Os fones até saíram, tamanho foi o impacto.
— Mas que porra é essa? — perguntei, sem conseguir conter o meu mau humor.
— O pneu do carro furou. Merda!
Meu pai estava realmente irritado. Saiu do carro, abaixou-se para ver o estrago e logo em seguida entrou, controlando-se para não ter um ataque. Ele era um homem muito descontrolado, que se irritava com qualquer coisa e se emocionava muito fácil. O engraçado é que tomava calmante todos os dias e o remédio não parecia fazer efeito algum.
— Eu vou trocar o pneu, tem um velho lá atrás. Não é a coisa mais segura, mas dá pra chegar até Palma.
Palma era uma cidade horrível que ficava em Minas Gerais. A única coisa que tinha era boi e vaca, sério. Nem celular pegava naquele lugar, tamanha era a falta de desenvolvimento. A coisa era tão deplorável que eu dormia pouco durante o ano para dormir o tempo inteiro no período que eu ficava por lá.
Ele saiu do carro e fechou a porta tão forte, que o barulho chegou a doer meus ouvidos. Foi em direção ao porta-malas e pegou o estepe e o macaco. Quando se abaixou para trocar o pneu, já não consegui mais vê-lo.
Coloquei os meus pés sobre o painel do carro e fiquei olhando para estrada que se estendia à minha frente. Ainda faltava uma infinidade de quilômetros para percorrermos. Foi nesse momento, enquanto eu estava perdida em meus devaneios, que escutei uma buzina muito alta e contínua e após isso, um barulho de algo se quebrando. Não houve grito. Um silêncio mórbido imperou quando o caminhão sumiu adiante.
Demorei um pouco para assimilar o que de fato tinha acabado de acontecer. Chamei meu pai com uma voz trêmula, mas não houve resposta alguma. Cheguei a pensar que tudo não passava de uma brincadeira por parte dele. Uma espécie de vingança de pai que prova que há sim o amor.
Sai do carro, lentamente, pelo lado do carona e dei a volta por trás do carro Foi então que vi. Gritei, incapaz de segurar o terror, incapaz de pensar. Meu pai...
O corpo ficou estendido no chão, como uma obra de arte pintada em um fundo cinza. Uma imagem viva e morta. O sangue escorria e o sol já fazia secar o rastro vermelho. Não sei ao certo quanto tempo fiquei parada, só sei que foi muito. Além de mim, não havia nenhum outro sinal de vida. É justamente nessas horas que as estradas ficam desertas.
Após um tempo, os urubus chegaram em bando e sinalizavam que uma alma nova chegava aos céus. Avançaram na direção do corpo e eu tentei espantá-los em vão. Briguei com os animais por um bom tempo, até chegar a um ponto que comecei a arrastar o meu pai estrada afora, tamanho era o desespero. Pouco a pouco fui perdendo a sanidade, até chegar a um estado de choque profundo. Não lembro de muita coisa depois disso. Só sei que os urubus eram muitos.
Isabella Gonçalves
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